Recordo-me claramente de ter passado por vários desses momentos infelizes, bem como de ter estado ao lado de várias pessoas no momento em que elas viviam seus dias de infortúnios. Lembro claramente do que falavam (e alguns ainda falam até hoje) para mim e do que eu mesmo costumava dizer para essas pessoas, na tentativa de fazer a dor diminuir e de lhes dar esperanças: “Quem está no leme? Não é Deus? Então, sendo assim só pode dar certo no fim”. Olha, com o tempo eu fui vendo que não é bem assim...
Voltemos dois mil anos no tempo. Jesus disse que nem uma folha de uma árvore cai sem que Deus tenha desse fato conhecimento. Creio que uma interpretação literal dessa frase nos levaria a uma grande contradição, pois como poderia estar tudo planejado se temos o livre arbítrio? Para exemplificar: se eu decidir parar de escrever este texto agora e me jogar pela janela, foi fruto do livre arbítrio ou Deus já tinha preparado isso para mim? Se foi fruto do livre arbítrio, mas Deus já sabia previamente que eu ia fazer isso, então meu próprio arbítrio é “programado” antes de eu nascer, o que o impede de ser livre. Porém, uma interpretação não literal da frase de Jesus nos leva à conclusão que, a meu ver, é mais correta.
Creio que Jesus, ao dizer tal frase, tenha apenas afirmado um dos atributos da divindade: a onisciência. Deus tudo sabe, tudo vê. Isso é um consenso em todas as religiões, cristãs ou não. Há, portanto, uma grande diferença em tudo saber e tudo prever, e mais ainda de tudo programar. Voltando ao exemplo acima, Deus certamente veria o momento em que eu iria desistir de escrever e me jogar da janela. Certamente enviaria mensageiros para tentar me dissuadir da idéia através da intuição, de pensamentos, os quais eu poderia ou não ouvir e atender. Aí está, em minha concepção, uma situação onde não há contradição entre o livre arbítrio e a onisciência de Deus. Ele viu, tentou me impedir, mas respeitou minha decisão de não O escutar. Onisciência e livre arbítrio andaram juntos.
Faz-se importante, porém, frisar que as leis de Deus não são baseadas em anarquia, como alguns parecem pensar. Até mesmo nossa liberdade possui regras, deve respeitar leis, e, portanto, deve ser vivida com disciplina. Liberdade exige educação e responsabilidade. É tênue seu limiar com a anarquia, que é, por sua vez, a vivência da liberdade sem a medida das conseqüências. Sendo assim, nosso livre arbítrio tem limites. E isso explica muitos dos casos de mortes inesperadas de muitas pessoas, que é um dos mecanismos que o Criador possui para nos impedir de continuar fazendo mal uso de nossas vidas. Este, por si só, é um assunto muito complexo e delicado e, pessoalmente, não consigo ainda discorrer de forma completa sobre ele sem usar muitos dos conceitos da Doutrina Espírita. Como não é meu objetivo neste momento falar apenas para um nicho de pessoas, vou evitar entrar em detalhes sobre o que penso sobre livre arbítrio, carmas coletivo e individual, causa e efeito, etc. Atenhamo-nos, pois, ao assunto principal deste texto.
Bom, vimos que Deus, apesar de tudo ver e saber, ainda nos dá o livre arbítrio para que definamos os rumos a serem tomados em nossas vidas. Esta liberdade, entretanto, não é livre de limites, muito pelo contrário, carece de educação, disciplina e responsabilidade. É aí que volto ao início do texto e pergunto: quem está realmente no leme? Seria mesmo Deus?
Ora, se temos a liberdade de escolher os rumos para nossa vida, porque seria Deus aquele a “guiar o barco”? Por que jogar para cima Dele a responsabilidade sobre coisas que são, em sua esmagadora maioria, conseqüência de nosso próprio livre arbítrio, de nossos próprios atos? Há uma curiosidade imensa aqui, como já mencionado: Deus é sempre lembrado nas horas de dor, mas raramente o é nas horas de alegria. As conquistas são nossas, acontecem por nosso merecimento, as derrotas são obras de terceiros, onde o Criador está incluído. Por que isso? Comodismo, acredito.
“Livrar-se das responsabilidades é fácil. Difícil é escapar das conseqüências por se ter livrado delas". Bela frase do brilhante Graciliano Ramos. Explica muito do que acontece em nossas vidas. Quando não queremos ver os nossos próprios erros, jogamos a responsabilidade para Deus. “Deus quis assim”. Não, Deus não quis assim. Deus quer nosso progresso, nosso aprendizado, nossa evolução e felicidade. É isso que Ele quer. Qualquer outra coisa diferente disso não é divina, é humana. Somos nós, portanto, que temos que corrigir. Bebemos e dirigimos, aí quando há vítimas há duas hipóteses: “Por que Deus fez isso?” ou “Deus quis assim”. Temos relações sexuais com qualquer pessoa do sexo oposto – para alguns, até do mesmo sexo – que aparece em nossa vida, sem proteção alguma, aí quando as doenças ou a gravidez chegam, as mesmas duas hipóteses reaparecem. E assim se repete para todas as situações de infortúnio que pudermos imaginar. Por que não pensar que a responsabilidade é nossa? Por que os pais não concluem que em muitos dos casos educaram mal seus filhos, deram péssimos exemplos e não souberam levá-los para o caminho da responsabilidade e da disciplina? Porque é mais fácil transferir a responsabilidade para os ombros de alguém. Culpa-se o governo por não manter as estradas bem asfaltadas para justificar um acidente de automóvel com motorista alcoolizado que viajava em excesso de velocidade; culpa-se o “funkeiro” por fazer música que estimule o sexo livre e promíscuo para justificar a gravidez precoce de uma filha. Faz-se de tudo, menos assumir a responsabilidade pelo mal uso do livre arbítrio, mal cumprimento do dever de pai e mãe, mal cumprimento do dever de cidadão e, pior ainda, mal cumprimento das tarefas de um filho de Deus. Qual não foi minha surpresa ao ver recentemente um pai dizer na televisão “se meu filho realmente bateu nesta mulher, ele tem que ser preso e pagar por isso”. Este é um exemplo de alguém que entende o que é disciplina e educação. Se ele não soube educar o filho ou se seus esforços foram em vão – o que é bastante comum – é irrelevante. O importante é que ele assumiu a responsabilidade e, mais do que isso, estava fazendo com que o filho assumisse a sua também. Deus não estava lá sendo acusado injustamente em sua declaração.
Em outra ocasião eu já disse que ao longo da história do mundo não faltaram exemplos a serem seguidos. Basta que queiramos segui-los.
Sendo assim, meu caro leitor, voltando à metáfora do barco, creio que Deus esteja mais para o papel de vento do que para o de marinheiro, que é, certamente, ocupado por nós. O vento pode levar o barco a qualquer lugar, o acompanha em todo o caminho e dá a direção. A escolha de virar o leme para o lado errado é unicamente do marinheiro, o vento não tem qualquer influência sobre isso. Ele só observará o barco indo e vindo, sempre pronto para levá-lo para o caminho certo, bastando apenas que o marinheiro queira virar o leme para lá.