quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Atrás da porta

Muita coisa acontece ou pode acontecer em um ano. O mais legal - e raro - é quando um ano inteiro passa e tudo que nele acontece se baseia, deriva ou depende de um único fato ocorrido no dia exato de seu começo. Foi assim comigo nos últimos 365 dias.

Em dezesseis de dezembro de dois mil e oito aconteceu o renascimento de alguém que, olhando para trás a partir de hoje, precisava, e muito, renascer: eu.

O ano que se iniciou nesta data e que completa seu primeiro aniversário hoje foi dedicado a muita reflexão, gratidão, análise e tudo o mais que possa fazer uma pessoa olhar para si mesmo através do olhar para o Alto. Passei os últimos doze meses em completa clausura dentro de mim, o casulo mais seguro e protegido que há. Só eu tenho acesso total a ele. Devido a isso, pude me conhecer ainda mais e ver o quanto precisava mesmo ter mudado para que, enfim, eu pudesse achar o caminho correto, o caminho de elevação espiritual, o caminho de luz, de Deus. Há ainda muito a mudar, evoluir e crescer, mas este primeiro ano foi aquele onde me dei conta disso, exatamente como um bebê que vai, aos poucos, percebendo que precisa de muito ainda para conseguir se comunicar e existir no mundo onde foi inserido. Em um post anterior eu falei sobre isso, sobre o que mudou. E há ainda muito mais a falar, o que farei gradualmente em situação futura.
E por que este ano foi tão importante? O que aconteceu no dia dezesseis de dezembro de dois mil e oito que marca um novo começo, um renascimento? Foi neste dia que fiz meu PET/CT, o exame que disse: seu corpo está limpo, não há mais células cancerígenas dentro dele.

Vou tentar descrever um pouquinho do que foi aquele dia pra mim, a começar pelas quarenta e oito horas que o precederam.

Dois dias antes de fazer o exame é iniciado o preparo. Uma dieta rigorosa é imposta ao paciente para que haja corte quase total da ingestão de glicose. As células cancerígenas processam esta substância de maneira diferente, e todo o exame se baseia nisso. Continuando... Foram dois dias de muita, muita fome. Só podia comer em horas certas e alimentos e quantidades predeterminados. Era salada, queijo minas, uma fatia de pão, coisas assim. Acho que foi a alimentação que mais me fez ver que estava doente durante todo aquele ano... Quem me conhece sabe como gosto de comer e pode imaginar o que foram esses dois dias pra mim e para o meu estômago. Coitados de nós... De ponto positivo, relembrou a meu paladar o gosto delicioso das saladas. O problema não é comê-las, mas só poder comê-las. Pra alguém com minha altura e peso isso não é nada fácil.

No dia marcado para o exame o clima estava esquisito em São Paulo. Uma chuva chata caía sobre a cidade. Diz-se por aí que quando chove em um dia de evento especial, significa boa sorte. Pra mim, pelo menos nesse dia, funcionou.

Acordamos cedo, eu, minha mãe, minha mulher e minha irmã e fomos para o HCor, um dos melhores do Brasil e de São Paulo. Eu, como sempre, rindo e descontraído, as demais tentavam disfarçar o nervosismo. Eu, juro, não estava nervoso. Estava ansioso, é diferente. Queria saber como seria todo aquele dia. A resposta eu já tinha dentro de mim e não me permitia duvidar dela. A quimioterapia já havia me esgotado. Eu tinha feito dezesseis aplicações e as quatro últimas foram as piores. Era muito desgastante e eu atingira meu limite. Havia um mês que não passava mais por aquilo, mas uma resposta negativa nesse exame me levaria a lugares bem piores do que as últimas semanas haviam sido. Além da fé e das já mencionadas vozes, o cansaço e o medo ajudavam a ter certeza do diagnóstico que viria.

Chegando ao hospital, fiz o check in e esperei ser chamado. Não havia mais nada a fazer a não ser esperar mesmo. Já havia recebido as aplicações de quimioterapia, a dieta preparatória e nada mais tinha a fazer a não ser esperar pra ver se tudo isso tinha obtido o efeito esperado. Com um pouco de atraso, a enfermeira me chamou. Sabe, não esqueço os olhos das minhas doces acompanhantes. A esperança que eles carregavam e o medo que a acompanhava me deram, também, medo. “E se não acontecer como elas esperam?”, pensei. Por mais que tivesse certezas dentro de mim, não podia decepcioná-las mais uma vez. Pela primeira vez naquela semana eu me abalei, mas ainda assim entrei confiante. Esqueci até da fome que sentia...

Lá dentro, na área de preparação para o exame, eu conversei longamente com a enfermeira, que me informou que o tempo total até eu sair do exame era aproximadamente de duas horas, a partir daquele instante. Pedi que ela avisasse minha família, pois elas morreriam de fome se fossem me esperar acabar pra só então comer. Ela o fez. Foi bom porque elas puderam sair, comer e passear pela Av. Paulista. Até compraram um Tyrone pro meu sobrinho. Ele diz que o tio Leandro deu pra ele, mas não foi, foi a tia Yviana...

Bom, lá dentro eu me preparava para o exame, física e psicologicamente. Desde que cruzara aquela porta restrita minha mente entrou em prece e comunhão com o Alto. Eu só queria que tudo desse certo, que aquele dia fosse a minha própria tomada de Orleans prometida pelas vozes. E foi...

Troquei de roupa e me vesti com aqueles trajes estranhos de exames de tomografia e afins. Parece que vão arrancar seu rim ou te implantar um chip de monitoração alienígena. Mas era necessário, então pus. Fiquei um tempo sentado em uma cadeira esperando uma enfermeira para fazer o preparo da veia e tal. Acesso que chamam isso, não é? Lembrei da minha mulher que sempre desmaia quando vê fazerem isso em alguém. Aliás, quando for escrever sobre os fatos curiosos da minha doença, ela aparece desmaiando e atrasando minha biópsia. Foi engraçado nesse dia...

Depois de preparado, uma outra enfermeira me levou para um quarto isolado com uma maca, uma pequena TV e frio, muito frio. Como eu tenho termostato interno de pinguim, ótimo. Deitei na maca e ela me injetou uma quantidade absurda de glicose por uma seringa gorda como nunca tinha visto. Ela disse: “Não faça esforço, nem mesmo contraia os músculos pra não gastar a glicose. Se estiver com frio avisa para diminuir o ar. Toda a glicose tem que estar disponível pro exame. Nem mesmo coloque os braços sobre a cabeça para não fazer qualquer tipo de esforço”. Lembro de pensar “p..., que exame sinistro. Depois disso, tem que dar certo”. Ela também falou que eu ia ter que tomar um copo de água com contraste a cada dez minutos. Problema algum até o terceiro, no sétimo você já começa a sentir saudades da quimioterapia. O oitavo só Deus sabe como desce...

Deitado na cama, relaxando ao máximo, continuava com meu papo astral e ia ficando cada vez mais tranquilo. A TV em frente a mim ficava reproduzindo imagens de paisagens lindíssimas, animais silvestres, etc. Lembro que falei bem baixinho “e tem gente que ainda precisa de provas pra crer em Deus”. Ficava ali, cheio de fome, tentando abstrair os roncos do meu estômago, concentrado no que estava fazendo. A cada dez minutos eu era interrompido pelo bendito copo d’água, mas conseguia bater um papo legal com o Alto, além, é claro, de falar comigo mesmo, de fazer uma retrospectiva dos últimos meses.

E foi essa retrospectiva que, finalmente, me levou a um clima mais introspectivo ainda. Parecia que só ali caía a ficha da importância do exame. Não foi bem isso que aconteceu, pois eu já sabia da gravidade daquilo, mas parece que o botão de boost foi apertado e a simbiose com meu espírito se fez completa. É estranho lembrar. Tenho as imagens ainda claras de como fiquei diferente. Revendo as cenas em minha cabeça hoje eu me sinto maior, mais alto, forte e velho. Minha imagem que aparece na tela mental é outra, como se fosse uma versão mais velha de mim mesmo. Fiquei mais sério, concentrado e pronto pra o que estava por vir do que em qualquer outro momento.

Depois de ser ajudado pela enfermeira – lembra que eu não podia fazer qualquer esforço? –, levantei e fui, então, para a sala de exame. Olhei para a máquina e pensei “então é você quem diz se tudo funcionou...”. Deitei na posição correta e esperei o médico chegar, o que logo aconteceu. Ele era um homem já grisalho, simpático e espirituoso, como deve ser alguém que lida com pacientes que estão normalmente em estado emocional muito sensível. Ele me perguntou sobre o contraste venoso e eu disse que tinha alergia, pedi que ele ligasse pra minha médica, pois ela saberia se valeria à pena correr o risco em prol do resultado. Ele saiu e vi quando falou com ela ao telefone, sempre sorrindo. Logo ele voltou e disse que o ganho na legibilidade não era tão grande assim que justificasse o uso do contraste. “vamos sem ele, então”, ele disse. Lembro que ele falou algumas palavras de incentivo pra mim, só não consigo lembrar quais foram. A esta altura eu já estava completamente imerso no meu próprio eu, na minha ligação com o Alto e pouco sentia do que acontecia ali. Minha concentração e sensibilidade com o entorno etéreo eram muito maiores do que com o que se pode ver com os olhos da carne. Depois disso a enfermeira e o médico se retiraram e fecharam a porta. O exame ia começar...

Durante o exame – que durou cerca de noventa minutos – pensei em milhões de coisas. Eu orava, desviava a mente pra coisas fúteis, pensava nas músicas do meu disco, orava mais um pouco, enfim, pensava em qualquer coisa que mantivesse o tempo passando. A fome que eu sentia a essa altura é inimaginável. Os dois últimos dias foram de alimentação mínima, o exame requer um jejum longo e eu esperara muito além da hora prevista, pois houve um atraso nos pacientes anteriores. Eu estava, definitivamente, com muita fome. Em dado instante, devido à posição que me encontrava na máquina, comecei a sentir dores em várias partes do corpo, mas não podia me mexer. Eu tinha que resistir. Foi aí que recuperei a concentração que nunca deveria ter perdido e voltei a ficar imerso no meu próprio espírito. Voltei a ter o controle total de mim mesmo ao ponto de fazer a dor passar. A concentração era tanta, a imersão era tão profunda, a oração tão intensa que algo extraordinário aconteceu.

Meus braços estavam esticados ao lado de minha cabeça, espremidos no tubo da máquina. Eu sentia muito incômodo, muito mesmo. Eu orava, de olhos fechados, pedia muita ajuda até que, em dado momento, vi, claramente, meu pai em pé ao lado da máquina, atrás de mim, segurando minhas mãos entre as suas. Nunca, nunca vou esquecer isso. A coisa durou cerca de um segundo, mas foi o suficiente para mim. Você pode perguntar como eu consegui ver, de olhos fechado, alguém que estava atrás de mim. A alma vê, meu amigo, não só os olhos veem. E foi assim, com a alma, que vi meu pai ali, segurando minha mão em uma hora tão importante...

A partir deste momento tudo ficou mais fácil e o exame terminou sem que eu sentisse mais nada. A porta se abriu e a enfermeira entrou para me ajudar a sair da máquina e da sala. Logo depois de passar pela porta eu encontrei o médico, que vinha com o indelével sorriso no rosto. Eu pensei “deve ter coisa boa pra falar. Se bem que ele não parou de sorrir desde que o vi, pode ser qualquer coisa”. Aí ele veio e me estendeu a mão. Antes de cumprimentá-lo eu perguntei sobre o que ele tinha visto, como tinha sido e tal. Só então apertei sua mão. A resposta dele foi “pelo que vi, tudo limpo. Não vi nada de anormal em qualquer lugar. Vou realizar uma análise mais profunda, mas, a princípio, tudo limpo”. Quem me conhece sabe que sou um cara meu seco, um pouco iceman para certas coisas. Neste caso não foi diferente. Sorri para ele – com os olhos também, o que, no meu caso, é muito raro –, apertei um pouco mais sua mão e disse obrigado. Ele me pediu para esperar um pouco ali, pois olharia atentamente os cortes do exame para ver se estavam nítidos o suficiente para a análise mais aprofundada que ele teria que fazer. Se não estivessem, eu teria que voltar para a máquina, caso contrário estaria liberado. A enfermeira ficou responsável por me avisar. Fui até a cadeira aguardar. A mesma cadeira onde fiquei aguardando para ser chamado; a mesma onde fora feito o acesso. A enfermeira sorria mais do que eu. Devem ter achado que eu era louco. A maioria das pessoas, no meu lugar, explodiria de felicidade e tal. Eu só me limitei a sorrir.

Sentado na cadeira eu olhei em volta por alguns segundos. Os pacientes que estavam ali pareciam, todos, em situação mais grave. Tinha um idoso em estado bem delicado, uma mulher com aparência bem triste. Eu continuava ali, sentado, imóvel e sem pensar em absolutamente nada. Poucas vezes em minha vida me senti assim, com a mente tão vazia. Bastou, porém, piscar os olhos para a mente se encher. Parecia que este ato abria as comportas dos pensamentos represados. Juro que achei que ia morrer. Dizem por aí que no nosso último suspiro vemos toda a nossa vida na nossa frente, não dizem? Foi assim comigo: vi minha vida toda em segundos. Mas não era porque estava morrendo. Pelo menos não como entendemos a morte. Eu era, sim, um moribundo, mas que reencarnava naquele mesmo instante. Minha consciência trocava de corpo, ou melhor, meu corpo trocava de consciência. Eu morria e renascia no mesmo momento. Uma nova piscada de olhos fez o filme parar e os pensamentos se organizarem. Lembrei de meu pai segurando minha mão, de minha família do lado de fora me aguardando, das palavras do médico: “tudo limpo”. Lembrei disso e, como todo recém nascido, chorei. Não aos prantos, mas uma sutil e discreta lágrima correu pelos meus olhos, jocosamente acompanhada de um largo sorriso. Eu costumo dizer que os bebês choram quando nascem em sinal de protesto por vir a este mundo. Ironicamente, eu chorei em sinal de gratidão por receber a chance de continuar mais um pouco nele. Gratidão por estar vivo, por não submeter minha mãe e minha irmã a duas perdas consecutivas, por ter vencido a batalha, por ter a certeza de que todas as certezas que tinha ao longo do processo eram reais, por ter a chance de viver aquele momento e tantos outros que sofreram da mesma doença não e, mais ainda, por ter a certeza de que meu pai estivera ali. Sinto falta dele, mas, ironicamente, durante todo o tratamento eu sentia pouco sua ausência. Seu exemplo era tão vivo em mim, era a única coisa que me guiava para suportar as sessões de quimioterapia e tudo que vinha com elas, que para mim ele parecia mais vivo do que nunca. Era como se ele estivesse ali o tempo todo, me lembrando de como encarou seu câncer e me ensinando como eu deveria encarar o meu. Quando, naquele momento, percebi que tudo se acabava, tive a certeza do inexorável: ele não estava mesmo entre os encarnados neste mundo. Mas isso não importa, pois ele estava presente ali, e disso eu tinha certeza. DaVinci dizia que “para estar junto não é preciso estar perto, mas sim do lado de dentro”. Estou junto dele e ele de mim, tenho certeza disso.

Não demorou muito para que a enfermeira viesse me avisar que o médico confirmara que estava tudo ok e eu podia ir embora. Deste momento até a saída pela porta restrita eu pensava somente em uma coisa: como ia falar o resultado pra minha família? Fiz ao meu melhor estilo: falando.

Troquei de roupa e saí pela porta e, se a TV da sala não estivesse ligada, teria ouvido os três coraçõezinhos batendo a mil ao me verem surgir ali. Um quase uníssono “e aí?” me recebeu. Eu, com a cara mais normal do mundo, como se tivesse feito um simples hemograma, respondi somente um “tudo bem”. “Como assim, tudo bem? O que ele falou?”. Minha mãe parecia que ia explodir. Era engraçado. Decidi acabar com o drama e dei a elas o que elas queriam ouvir: “Está tudo limpo”. “Como assim tudo limpo?”. “Tudo limpo. Ele disse que não achou células cancerígenas em lugar nenhum”. Um breve silêncio de menos de um segundo e um sorriso no rosto de uma pessoa que aguardava alguém sair com a mesma notícia foi tudo que pude perceber ali até o uníssono “graças a Deus”. Alguns abraços e sorrisos e eu, muito sensível, quebrando o clima: “estou com fome”. Fomos à lanchonete do hospital pra eu gastar meu vale lanche, afinal de contas o exame era muito caro e o plano de saúde não cobria. O mínimo que poderiam me dar era um vale lanche. Todo mundo conversava como se a contagem de plaquetas estivesse normal, era engraçado o pacto de play it cool implícito que havia ali. Chegamos na lanchonete, peguei meu lanche fuleiro – mas que me manteria em pé e vivo até chegarmos ao shopping para um almoço de verdade – e fomos para uma mesa. Era todo mundo querendo ver quem ia explodir primeiro, até que minha mãe pediu para eu repetir o que o médico disse. Eu repeti e aí o primeiro dominó caiu. E você sabe que quando o primeiro dominó cai, todos caem junto. Minha irmã começou a chorar e aí as outras Marias foram atrás dela. Me emocionei com a emoção delas, mas segurei a onda e comi meu pão sem graça evitando falar. Se falasse, iria na onda delas. Lágrimas secadas, fui pagar o bendito exame e fomos embora almoçar.

Enfim, foi assim aquele dia que hoje celebra um ano. Tenho esta data como um segundo aniversário, uma data tão importante quanto o quatro de março. Talvez não tão importante pelo resultado em si, mas pelas reflexões e consequentes transformações que ele trouxe. Fico grato e feliz de ter podido viver isso tudo. Espero não decepcionar aqueles que me deram essa missão. Espero estar sabendo colher os frutos da semeadura que fui forçado a fazer.

Hoje é um dia especial. Tão especial que me fez abrir a porta restrita que eu achava que nunca ia abrir: a porta daquele PET/CT e a porta das minhas recordações. As portas estão abertas agora, pode entrar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O que mudou?

Quando descobri oficialmente que estava com câncer, a primeira coisa que pensei foi: “E minha mãe? E minha irmã?”. Digo “oficialmente”, pois dentro de mim eu já sabia há um tempo até mesmo a época em que tudo ia acabar. Mas isso é outro papo, outra história. O assunto de hoje é outro.

Meu pai tinha morrido há menos de quatro anos e lá estava eu levando minha família para mais uma montanha russa das mais diversas emoções. Só conseguia pensar nisso. É óbvio que pensava na minha mulher, nos meus amigos, etc., mas somente minha mãe e minha irmã sabiam do que eu estava falando: os quase oito anos de doença do meu pai que não terminaram da maneira que queríamos. Enfim, parece mentira, mas meu estado de saúde era a última coisa que me preocupava naquele momento. Eu tinha certeza que ficaria tudo bem. Dentro de mim eu sentia a força mais incrível que pode existir, era como se eu fosse uma espécie de Joana D’Arc da minha própria França. As vozes que me guiavam iriam me libertar. Graças a Deus eu também tinha a certeza de que não seria liberto da maneira que ela foi... Mas isso eu conto em outras oportunidades.

Uma vez que eu tinha a mais absoluta confiança de que tudo ficaria bem, só me restava uma coisa a fazer: mostrar isso para todo o resto. Convencer as pessoas ao redor de que o que eu sabia não era delírio, animismo, fanatismo ou qualquer coisa do tipo, mas sim uma certeza que vinha do Alto. O tempo foi passando e ia ficando cada vez mais claro que eu falhava nessa tarefa...

A doença foi um grande modificador na minha vida em todos os aspectos. Muda-se 180º após algo assim, é claro. Coisas que antes não valiam nada passam a ser super importantes, e vice-versa. As coisas do Espírito, que sempre me foram muito importantes, ganham ainda mais peso. A certeza de que cada momento só dura um piscar de olhos e que no instante seguinte tudo volta a ficar fora do seu controle é imensa após quase ver a “luz branca”. O problema é convencer as pessoas disso, principalmente durante o processo. Depois que tudo passa, com tempo para analisar as coisas com calma, às vezes acontece de aprenderem tanto quanto você, mas nem sempre é assim, principalmente “durante o vôo”. E é isso que percebo nitidamente hoje: apesar de me transformar, a doença veio para transformar um grande número de pessoas que participavam dela direta ou indiretamente. Eu sempre disse isso aos mais próximos: “Deus me usa como instrumento para a transformação de um grupo de pessoas, e só posso Lhe agradecer pela oportunidade e benção de ficar doente”. Era tido como fanático. Tudo bem, presto contas somente a Ele, não ligo para o que falam. Ligo, sim, se tiver passado um ano inteiro vomitando, sentindo dores, cheio de privações “em vão”. A você, então, que passou tudo comigo, seja lá qual tenha sido seu grau de proximidade, uma pergunta: o que você aprendeu?

Eu aprendi que a vida dura o quanto Deus quiser que ela dure e que se a valorizarmos como deve ser valorizada ela pode durar muito tempo; aprendi que o que não está sob nosso controle não deve nos causar inquietação, pois foi pra isso que um homem morreu pregado há 2000 anos: pra nos ensinar a ter fé; aprendi que viver com o suficiente é mais do que suficiente e que a vida deve ser aproveitada ao máximo, pois nunca se sabe quando ela pode acabar. Aprendi mais um montão de outras coisas, mas estas são as mais importantes. Eu acho...

Viver fica diferente depois que se escapa de uma dessas, quem escapou sabe do que estou falando. Tudo muda de contexto e o foco que se dá às coisas muda completamente. Os objetivos traçados antes não são necessariamente mais os mesmos traçados depois. As coisas das quais gostávamos antes não são mais as mesmas, e o mesmo ocorre com as que não gostávamos. Tudo muda, o mundo muda, o interior muda, o destino muda. Em mim só não mudou uma coisa: a preocupação com o dever cumprido. Se minha doença foi para modificar os que estavam ao meu redor, pergunto: consegui? Ou melhor, Deus conseguiu através de mim? Se sim, ótimo, se não, só lamento. Eu mudei e sei pra onde vou, e você?