sábado, 23 de fevereiro de 2008

O homem das cavernas

Era mais um lindo início de tarde ensolarado naquela pequena cidade. A movimentação era grande, pois estava na hora da troca de turno na única escola que havia por lá. Os alunos da manhã deixavam o ambiente, ao passo que os aprendizes do turno da tarde se aproximavam e aguardavam o momento correto para entrarem para mais uma jornada de aprendizado.

Em um canto perto do portão principal já se havia formado um pequeno grupo de moças e rapazes que conversavam animadamente a respeito das coisas do cotidiano: namoro, amizade, música, enfim, tudo aquilo que jovens saudáveis desta faixa de idade costumam conversar.

Em dado instante um dos rapazes do grupo, de nome Natanael, sentiu a falta de um amigo que costumava participar das conversas e perguntou aos demais, preocupado:

- Por acaso algum de vocês sabe do Pedro? Ele não passou lá em casa para virmos juntos, como fazemos todos os dias, nem chegou até agora. Será que ele está doente?

Diante da resposta negativa de todos, Natanael guardou sua preocupação, para evitar quebrar o clima divertido e amistoso que se formara, e continuou a conversação com os demais colegas.

Do outro lado do portão, dentro do colégio, mais especificamente próximo à sala dos professores, Pedro aguardava ansioso pelo fim da aula do turno da manhã, pois precisava conversar com o professor Demétrius. Estava muito preocupado e queria ouvir alguns conselhos daquele que ele julgava ser o mais bondoso homem existente na cidade, quiçá no mundo.

Não tardou muito para que o aguardado professor chegasse. Ao ver o jovem ali tão cedo e com a expressão um pouco alterada, o gentil ancião perguntou alegremente:

- Pedro, meu filho, o que o traz aqui? Por que você não está lá fora com seus amigos, paquerando as belas moças da sua idade?
- Ah, professor, preciso muito conversar com o senhor. O senhor teria alguns minutos para mim?

Demétrius, solícito, respondeu afirmativamente, convidando-o a entrar com ele na pequena sala dedicada ao descanso dos professores. O anfitrião providenciou uma cadeira e um copo de água para cada um e perguntou ao rapaz:

- Então, meu filho, o que lhe perturba e o traz ao convívio desse homem velho, privando seus amigos de sua agradável companhia?

O jovem mal esperou seu professor acabar a pergunta para começar a narrar, ansioso, aquilo que o afligia.

- Sabe o que é, professor? Eu ando muito triste... Eu olho em volta e vejo que não tenho lá muitos motivos pra ficar assim, mas eu não consigo mudar. Eu tenho os meus amigos que gostam de mim, faço um razoável sucesso com as meninas, não passo fome, tenho pais maravilhosos, mas ando muito triste, sentindo falta de alguma coisa que eu não sei nem o que é. Me sinto mal por isso, pois sei que não deveria ser tão ingrato com a vida... Como vejo que o senhor nunca fica triste, está sempre rindo e sempre brincando com todos nós, vim lhe perguntar qual é o segredo de tamanho bom humor...

Demétrius sorriu. Aquele era mais um jovem que passava pelo velho problema da busca incessante da felicidade. Ele mesmo havia passado por isso quando era daquela idade. Conhecia cada uma das rugas causada por essa insaciável sede intrínseca ao ser humano no ainda jovem rosto do rapaz à sua frente. Com toda a brandura que lhe era inerente, o professor tentou melhorar o ânimo de Pedro.

- Meu bom rapaz, acalme-se. Pergunto-lhe uma coisa: você conhece alguém nesse mundo que tenha tudo aquilo que deseja?
- Não.
- E quantas dessas pessoas que você conhece são felizes.
- Muitas delas. Na verdade, quase todas.
- E por que você não é?
- Não sei, por isso me sinto mal, me sinto culpado e ingrato. Injusto com aqueles que têm menos do que eu. Existe tanta gente no mundo sem família, sem amigos, sem casa pra morar...
- Exatamente, meu filho. Veja este velho homem à sua frente... Se formos levar em conta os bens que possuímos, o que tenho eu se comparado a você? Não tenho mais pais, não tenho mais minha querida esposa que já se foi há alguns anos, não tenho filhos, irmãos ou qualquer pessoa pra cuidar de mim. Moro sozinho e vivo apenas do meu trabalho como professor nesta escola. Apesar disso tudo, você por um acaso já me viu triste andando por aí?
- Não, senhor. É exatamente por isso que vim lhe procurar, “seu” Demétrius... Acho que só o senhor pode me ajudar...

O velho professor, abrindo um sorriso largo, pousou a mão sobre o ombro direito do jovem e disse:

- Deixe-me contar-lhe uma história. Há muitos e muitos anos o mundo era habitado apenas por homens bastante primitivos, que chamamos vulgarmente de “homens das cavernas”, certo?
- Sim.
- Existe uma pequena estória em minha família que é passada de geração em geração, e que foi passada até mim por minha doce, saudosa e querida avó. Essa estória conta um caso interessante que teria acontecido com um homem das cavernas...

“O homem vivia sozinho em sua gruta. Não possuía vizinhos, amigos ou nada que julgasse muito interessante à sua volta. Um belo dia, ele decidiu que nada daquilo valia à pena. Havia se cansado de tanta solidão. Vivera anos daquela maneira. Era chegada a hora de mudar, de ser feliz. Sempre que subia no cume dos morros ele via vales imensos, campos floridos e uma promessa de vida muito mais interessante do que aquela que levava. Estava farto de morar em sua caverna escura, de comer sempre as mesmas frutas, as mesmas espécies de animais e ter apenas os pássaros como companhia.”

“Em uma bela manhã de sol, o homem decidiu juntar suas armas, suas vestes, um pouco de comida e sair em busca de uma morada do outro lado da montanha, onde certamente encontraria sociedade, melhor alimentação e habitação. Partiu, então, com o coração repleto de esperanças, em busca de uma nova vida, de mais alegria e felicidade.”

“Alguns dias de viagem se passaram e o esperançoso homem chegou ao seu destino. Um lindo campo, cheio de flores, frutas e animais que ele não conhecia. Uma infinidade de maravilhas escondidas de seus olhos até aquele momento era ali revelada. Aquele homem solitário nunca havia se sentido tão feliz em toda a sua vida e tinha a total certeza de que tudo aquilo com o que sonhara era, finalmente, seu.”

“Os dias iam passando e as descobertas eram incessantes. Cada novo animal que caçava, cada planta que cheirava, tudo aquilo fazia valer à pena tantos anos de espera.”

“Um dia, porém, a chuva caiu forte e impiedosa. Naquele lindo campo aberto, cheio de nobres e belas manifestações de vida, a fúria da água que vinha do céu era brutal e castigava o homem que, desprotegido, sem sua escura caverna, não tinha onde se esconder. Seguidos e ininterruptos foram os dias de tempestade, até que em uma determinada manhã o sol decidiu brindar novamente o mundo com seu calor e sua força revigorante.”

“Talvez esse tenha sido realmente o dia mais feliz daquele aventureiro homem das cavernas. Os seguidos dias de chuva, vento e frio fizeram com que ele adoecesse, e a luz do sol era um bálsamo que lhe iria trazer de volta a saúde perfeita. Decidiu, então, se alimentar, mas olhou em volta e viu todo o estrago que a tempestade havia causado aos animais que havia caçado. Doente como estava não tinha forças para novas caçadas, muito menos para voltar pra casa.”

“Sua situação foi se agravando dia após dia.”

“Juntando todas as forças que lhe restavam, o homem levantou e decidiu procurar alguma planta para comer, pois a fome era muito grande e caçar era, naquele momento, impossível. Viu algumas ervas que lhe pareciam não venenosas, pois eram bastante perfumadas e bonitas, e decidiu ingeri-las. O pobre aventureiro só conseguiu fazer isto uma vez. Sem o saber, as plantas que ingerira eram levemente venenosas e, como estava muito fraco, não teve forças para reagir, morrendo pouco tempo depois”.

Ante o olhar fixo e atencioso do jovem Pedro, Demétrius prosseguiu.

- Cada um de nós, meu rapaz, dispõe na vida de tudo aquilo de que precisa para alcançar o sucesso e viver bem. O pobre homem das cavernas da estória que acabei de lhe contar julgava que sua morada era escura e solitária, mas era ela que o protegia da chuva que o tornou doente; os animais os quais estava cansado de comer e caçar eram-lhe alimento garantido, o que lhe faltou em seus momentos de convalescença após a chuva; e as belas plantas que tanto invejou se tornaram seu algoz.
“Portanto, meu filho, não procure a felicidade naquilo que está à sua frente ou ao seu redor. Seja feliz com o que tem e use cada um dos seus bens, materiais ou não, para ser feliz. Veja em seus familiares, em seus verdadeiros amigos e em todos aqueles que lhe amam de verdade a caverna que lhe protegerá das tempestades da vida; no alimento que está sob sua mesa todos os dias veja a comida que lhe é garantida e que, ao invés de lhe causar enjôo, lhe deve ser motivo de gratidão, pois lhe mantém vivo e saudável, com forças para estudar e, futuramente, trabalhar para seu próprio sustento. Não inveje as ”flores” que você não possui, pois elas podem ser o caminho para sua perdição. Descubra a felicidade naquilo que você tem, pois certamente ela está lá.”

Pedro estava emocionado. As palavras de Demétrius lhe deram novo ânimo para aquele dia e para muitos outros que o seguiriam. O rapaz agradeceu ao seu professor e saiu para encontrar seus amigos na porta da escola. Ele já estava sentindo falta das conversas e risadas que davam juntos todas as tardes...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A arte de viver

É muito curiosa a arte de viver...

Quando nascemos somos meros fantoches nas mãos dos pais, avós, tios, amigos. Passamos anos de nossas vidas sem poder viver a própria vida. Não sabemos nem mesmo a hora de fazer nossas necessidades mais básicas. Elas simplesmente vêm. O máximo que dá pra fazer é choramingar quando isso acontece, ou quando estamos com fome. Viver, que é bom, nada.

Então crescemos um pouquinho. Vamos criando vontades, gostos e manias. Começamos a correr pela casa, curiosos a cerca de tudo aquilo que já estávamos há meses, às vezes anos, contemplando e nunca tivemos a chance de chegar perto. Tocar nesses objetos é tudo que nos vem à cabeça. Os pais, avós, tios e amigos ainda estão lá, mas já podemos rejeitar um, preferir o outro. Já dá, pelo menos, para andar sozinho e sair correndo pro colo do vovô quando ele chega cheio de presente, ou do papai quando ele chega do trabalho. As coisas começam a melhorar, já dá até pra escolher a comida. Viver parece ser algo muito divertido nesta época.

Aí vem a fase boa de verdade. Parece até mentira que seja possível existir algo tão bom! Vamos ao colégio só pra brincar e dormir depois do lanchinho. Brincamos na areia do playground do edifício ou na piscina do clube onde o papai e a mamãe nos levam no fim de semana. Os amiguinhos da escola vão à nossa casa jogar vídeo-game, vão com a gente no estádio ver os jogos do Fluminense com o papai, mas sempre acabamos saindo mais cedo porque o papai tem medo de sair com a gente na hora que todo mundo sai. Às vezes, quando o jogo é à noite, nós mesmos queremos ir embora, porque o sono é grande. Cansamo-nos demais brincando no playground e na hora do recreio. E nem deu pra tirar a sonequinha no colégio. Acabou essa fase... Agora nós temos que começar a estudar matemática, história, geografia e decorar um monte de coisa que a gente acha que nunca mais vai usar. Quando os anos passam acabamos descobrimos que mesmo aos nove anos já tínhamos razão em alguma coisa que duraria até o dia de morrer: muitas dessas coisas a gente nunca mais vai usar mesmo.

Quando tudo parecia ser impossível de ser melhorado, começa a adolescência. Caramba, que diferença! A voz começa a ficar estranha, o rosto fica cheio de espinhas e os jogos no maracanã com aquele que um dia foi o papai e hoje é o ‘velho’, dão lugar às “baladas” com os amigos. Os jogos de futebol até continuam, mas sem o velho. Com os amigos é mais legal, mais divertido, porque podemos falar à vontade sobre as paixões do colégio, sobre as meninas que a gente acha que vai amar pra sempre – ou até a próxima menina bonita aparecer – e sobre as coisas proibidas. Sou do tempo onde essas coisas proibidas eram apenas jogar bola escondido, ao invés de ir pro curso de inglês. Não havia bebidas, drogas e afins. Essa parte da vida parece ótima em um primeiro momento, mas olhando bem, quando vamos chegando à maior idade, percebemos que não viramos presidentes da república ou não viramos astros do esporte. Muito mal conseguimos ser o líder do grupo ou o primeiro a escolher o time nas peladas do fim de semana. Começamos a perceber que em poucos anos conseguimos amar pra sempre mais mulheres do que podemos contar e que a única coisa que parecia legal também não é bem assim: a liberdade. Se o ‘velho’ não liberar a grana, minha liberdade não difere muito da do canário belga que canta no quintal sobre a máquina de lavar. Pelo menos temos uma arma: a voz. Gritamos, chamamos os ‘velhos’ de caretas e dizemos que eles não nos entendem. Que nós somos a melhor geração que já surgiu, que no nosso tempo é diferente. Ai, ai... Se meu avô estivesse na sala pra ver essa cena teria um deja vu do mesmo discurso há muitos anos, mas ele em meu lugar. Bom, pelo menos estamos chegando lá. Aos dezoito já podemos ter carteira de motorista.

Aí chega a tão esperada idade e a auto-escola não é lá essa princesa tão linda que o espelho mostrava. Há muita maquiagem em seu rosto, e na realidade ela é uma moça bem mais enrugada e espinhenta do que parecia quando se tinha quinze anos. Juro que me lembrava da certeza que tinha nessa época de que aos dezoito ia fazer auto-escola e então pegar o carro do ‘coroa’ e ser feliz. O que deu errado? Simples: o ‘coroa’ não é bobo... Suou muito para levar o filho até ali com aquela educação, suou muito para comprar o carro que já tem dez anos de uso e já não é tão dirigível assim pra arriscar a vida do seu maior bem, recém entrado na maior idade.

“Vou com você”. Lembro como odiei ouvir esta frase. Meu pai (voltou a ser pai aqui. Agora ele tinha carro, tinha que agradar) não confiava em mim. Sabia que tinha que ter sido jogador de vôlei. Seria muito mais fácil. Mas, tudo bem, melhor com ele, do que não ir, não é? Pelo menos poderia dirigir um pouquinho.

Depois de algumas viagens com co-piloto, chega a hora do primeiro “vôo solo”. Lembro claramente como fiquei nervoso. Mas fui todo feliz com o ‘carango’ de mais de dez anos do meu pai, que finalmente confiou em mim. Mas aí ele trocou de carro logo depois, ou vendeu porque precisa do dinheiro, não lembro, e lá se foi a única coisa boa de se fazer dezoito anos... Já que não tem jeito mesmo, vamos pra faculdade, não é? Fazer o quê?

Não dá pra se esquecer o seu primeiro dia de aula em uma faculdade. Claro, estou falando do primeiro dos muitos “primeiro dia” de aula. Porque é claro que encontrar alguém que tenha terminado a primeira faculdade que começou é tão raro quanto achar um político no Brasil que seja digno de confiança. Está bem, exagerei, mas que é raro é. Mas, voltando ao primeiro dia, não dá para esquecer a cara das pessoas com expressão de “uau, que incrível”, menos você, é claro. Todos dizem a mesma coisa: “olha a cara das pessoas. Eu não sei o que tem demais nisso”. Mas todos, sem exceção, têm essa cara nesse dia. Ops, já ia me esquecendo, tem aqueles para os quais este não é o primeiro “primeiro dia”. Estes não têm a cara de “uau”.

Mas é incrível mesmo pensar que crescemos de verdade. “Caramba, vou me formar em algo. Quando sair daqui vou ser alguém, vou arrumar um emprego na área (montar um consultório, em alguns casos) e ganhar dinheiro”. Mas isso logo muda quando vemos que o gerente da loja de roupas onde você vai comprar uma camisa legal para sua primeira festa no grêmio estudantil é formado na profissão que você está estudando. “Ele deu azar”, você pensa, “comigo será diferente”. Mas muitas vezes acontece, alguns meses depois da formatura, de nos lembrarmos do vendedor enquanto lemos o jornal de domingo...

É nessa época que começamos a recordar do papai no maracanã nos jogos do Fluminense, nas brincadeiras na areia do playground e dos campeonatos de Super Mario Brothers com os amigos no vídeo game. Época boa. Começa a bater, esporadicamente, essa nostalgia melancólica dos tempos onde viver era só fazer aquilo de que se gostava e o que se queria. O resto era com papai e mamãe.

Mas a vida continua e os empregos começam a aparecer. A carreira, a ascensão, o progresso, o dinheiro, a independência, o casamento, as contas, os filhos, e tudo recomeça estranhamente, mas desta vez, somos os pais, e depois começará outra vez, mas seremos os avós. Também somos titios nessa época. Louco, muito louco. Ver a vida que vivemos, por outro ponto de vista, é realmente algo muito louco.

É aí que começamos a ver que nem tudo são flores no imenso jardim da vida. É aí que sentamos um dia e decidimos conversar com Deus pedindo para que Ele nos ajude com os problemas, e a resposta que recebemos, ou achamos que recebemos, não é muito bem, como dizer, esperada, óbvia. Parece que se agirmos assim, muita coisa pode dar errado. Aí não agimos, e tudo fica aparentemente certo, como todos esperavam. “Deus deve ter se enganado na resposta. Sou um orgulho pros meus pais. Passei no concurso público”. Parece que chegamos a um grand finale na nossa vida, aquele momento que encerra com chave de ouro todo esse ciclo. Mas um ciclo não se encerra, ele só volta ao começo...

Ta bom, ta bom... Também tem o outro lado. Também tem gente que mora debaixo da ponte, que não tem carro, ou nada disso que eu falei acima. Eu sei disso tudo. Mas eles vivem e vencem mesmo assim. Eles não têm nada, mas sorriem; se alimentam Deus sabe como, mas sobrevivem; Não têm cama quente, mas fazem amor; muitas vezes nem conhecem os pais, mas ainda assim não roubam e trabalham debaixo do sol, com os pés no asfalto pra viver. E vivem. Sorriem. Vibram com o gol do time de coração. E ensinam. Ensinam como devemos viver. Nenhum deles um dia achou que ia mudar o mundo, que ia ser famoso ou algo do tipo, mas viveu até o último momento acreditando que podia viver. Em um mundo tão cheio de injustiças, eles são as estatísticas que comprovam a pobreza e a fome, mas vivem. Vivem acreditando. Acreditam para viver. Vivem por acreditar. E todos os dias, quando a noite chega, eles se unem para espantar o frio e a fome e também para se proteger, para continuar vivendo. E nós, quando a noite chega, nem percebemos. Estamos ocupados demais deitados em nossas confortáveis camas planejando o dia seguinte, lamentando que o governo não nos dá atenção... Se preocupar pra quê? A vida vai chegar amanhã mesmo.

Sabe como vejo a diferença básica entre esses dois mundos? Um sabe o que é a arte de viver e o outro não. Os primeiros, os que conhecem a arte, escrevem diariamente suas peças, onde dirigem e atuam com muita garra e determinação. Escrevem o roteiro e fazem a devida adaptação para o palco da vida. Os outros apenas atuam em uma arte que a cada geração se repete e ninguém lembra mais como começou, nem onde começou. Por isso é louco olhar a vida dos filhos, dos sobrinhos e dos netos com nossos próprios olhos, porque é sempre tudo muito e tão igual, que chega um ponto onde não sabemos mais o que é lembrança e o que é o presente.

Acho que devemos fazer de nossas vidas uma coisa diferente. O mundo não quer que sejamos diferentes? Problema sério esse mesmo... Mas, mesmo quando havia a Santa (???) Inquisição (que descanse em paz), muitos homens e mulheres honrados levantaram suas vozes dizendo “eu não quero ser igual a todos”. Tudo bem, perderam as cabeças nas guilhotinas ou queimaram até a morte em fogueiras, mas tenho certeza de que hoje você só se lembra deles, e não dos filhos da mesmice de sempre...

Tomemos as rédeas de nossas vidas. Escrevamos para ela o nosso próprio roteiro, atuemos e dirijamos. Saiamos da mesmice! Saiamos do ciclo vicioso que leva ao ócio criativo. Não sejamos como os Buendìa de Garcia Marquez. Anarquia? Não, muito pelo contrário, disciplina. Não confundamos anarquia com liberdade. Liberdade exige disciplina, vigilância constante de nossos atos e muito discernimento. Anarquia é a ausência de tudo isso. É liberdade com irresponsabilidade. Há leis que são irrevogáveis, tanto na Terra quanto no Céu. E dessas últimas, queiramos ou não, não escapamos jamais.

Peçamos a Deus a inspiração para escrever o roteiro e a alegria para viver no palco da vida a nossa Vida. Se não for assim, como será? As adversidades sempre existirão, os reveses vão nos acompanhar a vida toda, mas em um bom roteiro, todo momento de tristeza é acompanhado por um toque de comédia, e vice-versa. O ator ajuda muito a fazer a platéia identificar essa variação. Sejamos, pois, assim. Atores principais na vida. Na nossa própria vida, vivendo o roteiro que nós mesmos escrevemos. Deus, o produtor da peça, vai te guiar no caminho que ele quer, mas a interpretação e o roteiro são seus. Você decide onde colocar as cenas e quais serão estas cenas. Mais do que isso, você as interpreta, você é quem vai dizer o quanto elas são tristes ou alegres. Seja um bom ator. Convença a platéia. Faça com que ela te aplauda. Lembre-se que o produtor da peça sempre te assiste enquanto você atua, e no fim, se você o convencer pela boa atuação, ele vai lhe aplaudir de pé.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Saber escolher

Recentemente fui levado pela vida a questionar um monte de coisas a respeito da própria vida. Mais especificamente, de como nos colocamos diante dela, de nossa postura em relação a tudo que nos cerca e a relação disso com nossos próprios anseios, desejos e necessidades. Percebi, portanto, que há uma sutil e quase imperceptível linha que separa a nossa liberdade de escolha do nosso egoísmo. Vi que é muito fácil confundir o nosso livre arbítrio com nossa necessidade de sermos nós mesmos, independente do que aconteça ao redor. E não é bem por aí. Pelo menos não deveria ser...

Percebi como é fácil acharmos que nossos anseios são sempre os mais importantes, que nossas necessidades e dores são as maiores, que nossos gostos são os mais legais, que nossas opções são sempre as corretas. Enfim, é muito comum acharmos que a vida pode ser como desejamos. Comum, sim. Normal não.

O livre arbítrio é individual, certo. Mas o bem estar é coletivo. A harmonia não acontece com um só elemento. Ela só existe se dois ou mais elementos estão envolvidos. Sendo assim, por mais que tenhamos a nossa vida, a nossa individualidade, as nossas escolhas, o nosso livre arbítrio, ainda temos uma preocupação maior: o bem estar coletivo.

Devemos, então, viver a vida de acordo com o que os “outros” pensam? Não, em hipótese alguma. A vida é de cada um de nós, dada a nós por Deus, para que dela façamos o que julgarmos ser o melhor. Mas nunca podemos nos esquecer de que há leis, limites e os nossos direitos são cercados por eles. Violá-los é violar a benção de Deus que é a liberdade com responsabilidade. É comum pensarmos que temos o direito de fazer o que bem entendermos do dom da vida, mas não é assim que prega Jesus. O Mestre deixou claro que todos prestaremos contas dos dons que recebemos, e que nossa obrigação é fazer com que esses dons se multipliquem (Lc 19:11-27).

É complicado e delicado falar sobre isso, porque meu direito de escrever e expor minhas idéias não pode ultrapassar os limites que demarcam o ponto de intromissão na vida alheia. Para não correr esse risco, falarei de mim.

Quando ainda muito jovem iniciei meus estudos do Espiritismo, tive alguns sérios problemas familiares. Meus pais, muito católicos, estranharam muito, se decepcionaram. Levou algum tempo para que eu os mostrasse que as coisas eram bem diferentes do que eles imaginavam, que o Cristo é o foco assim como no Catolicismo, e que esse era um direito meu. Acabaram aceitando, mesmo sem concordar. Houve o respeito, que deve haver sempre.

Aproveito para fazer um breve esclarecimento aqui. Hoje me considero da religião de Deus e de Cristo. Catolicismo, Protestantismo, Espiritismo, Hinduísmo, Budismo, Islamismo, todas essas religiões, em sua essência, levam a Deus, dêem a ele o nome que queiram dar. A prática do homem não pode ser confundida com a essência da mensagem. Não é justo achar que o Catolicismo é uma coisa satânica porque houve a Inquisição, o massacre da noite de São Bartolomeu ou as Cruzadas, todas obras dos homens. O mesmo pode-se dizer do Islamismo, em relação aos homens bomba da atualidade. Independente de minha afinidade ou não com uma crença ou outra, estudei cada uma delas o suficiente para saber que todas, em essência, são positivas e visam a evolução e ascensão do homem. Nós, homens e mulheres imperfeitos, é que damos a cada uma delas o toque de imperfeição. Em todas, sem exceção, há praticantes que não compreendem exatamente a mensagem que deve ser seguida. É aí que entra o respeito e a tolerância em prol do bem estar coletivo. Isso é algo que, infelizmente, ainda está longe de acontecer na Terra, pelo menos nesse aspecto.

Voltando às escolhas. Falava sobre minha inicialização nos estudos do Espiritismo. Algo aparentemente simples, não é? Uma divergência religiosa não deveria causar escândalo, mas causou. Pergunto: eu errei? Sinceramente: julgo que não. Sabe por quê? Porque essa foi uma escolha que, apesar de divergir dos meus pais e da maioria católica neste país, era a minha busca para Deus. Minha busca sincera para Deus. Imagino sempre o caminho inverso. Eu sendo adepto e praticante do Espiritismo e meu filho decide ser católico, por exemplo. Nossa... Penso que ficaria muito feliz. Meu filho buscando Jesus. Maior alegria não pode haver para um pai. Há dogmas que divergem aqui e ali? Sim, mas o “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” está nos dois lugares.

Pensemos agora em uma segunda situação, hipotética desta vez. Se ao invés do Espiritismo eu chegasse em casa dizendo que me iniciei no mundo do crime organizado. É um direito meu? Sim, é. Devo ser respeitado? Sim, claro, como em qualquer escolha na vida, esta deve ser respeitada. Minha escolha me separa de Deus? Sim, separa. Essa, meus amigos, deve ser a medida. Sempre devemos pensar se o que escolhemos nos afasta de Deus. É aí que entra o ponto chave da minha defesa do fato de considerar apenas Deus e Jesus minha religião. Cada credo carrega consigo um punhado de dogmas muitas vezes divergentes entre si, mas todos carregam o amor como pedra fundamental. E o amor já foi personificado neste mundo por muita gente: Jesus, Buda, Francisco de Assis, Gandhi, entre outros. Em minha opinião, o modelo é Jesus, mas o que dizer de Gandhi? Sendo assim, o amor em sua forma pura demonstrado no mundo por vários exemplos de vida é a cerca que deve limitar o terreno da nossa liberdade, da nossa escolha. Assim, mesmo divergindo, nunca sairemos do caminho que leva a Deus. Sem dogmatismos, sem fanatismos, sem guerras ou brigas.

Jesus, quando esteve entre nós, deixou claro que a fé, o amor e a caridade deveriam estar dentro de nós. Sempre nos ensinou a prezar as coisas do espírito. Chamou-nos, inclusive, de deuses. Nunca em sua vida Jesus precisou de templo para pregar, muito pelo contrário. Sempre os respeitou, diz-se que até expulsou vendilhões de um deles, mas nunca colocou como necessário, como condição sine qua non o seu uso para pregar. Pregava nos rios, nos mares, nas montanhas. Dizia que onde dois ou mais estivessem reunidos em seu nome, ele ali estaria. Foi contra excesso de normas e leis, resumindo em um simples mandamento de amor toda a lei de Deus. Sinto-me amparado pelo Mestre em minha escolha. Deixo para os homens o que é dos homens, fico com os mandamentos que vieram de Deus, puro, em sua essência, sem nossas intromissões deturpadas.

Pois bem. Voltemos à hipótese ali de cima. Entrei para o crime organizado. Sou um traficante e minha família, mesmo em dor, respeita minha escolha errada. Se tudo parasse por aí, não haveria problemas a não ser para mim mesmo, que escolhi o caminho errado. Mas não pára. Esse é um tipo de escolha que envolve muitas pessoas. Envolve parentes, amigos, pai e mãe. Quando vou preso, causo dor a meus pais. Quando estou envolvido em um tiroteio e posso morrer, mato lentamente minha família. Quando apareço na televisão algemado e cabisbaixo, exponho minha família e amigos à chacota popular. Quando brigo com a quadrilha rival, meus amigos e parentes mais próximos correm risco de serem mortos por retaliação ou ameaça. Enfim, essa não é uma escolha solitária, uma escolha que só me diz respeito. É uma escolha que, além de me desviar do caminho de Deus, me coloca em choque com os limites de meu livre arbítrio e do livre arbítrio de todos que estão próximos a mim. Há o carma individual, o carma coletivo e coisas do tipo? Sim, podemos dizer que sim. Alguns, pelo menos podem dizer. Mas prefiro não entrar em dogmatismos, seguir o caminho puro e simples do amor e usar as palavras de um homem que admiro muito, o Pe. Fabio de Melo. Permitam-me transcrever-lhes um trecho:

“Minha mãe também me diz, quando saio de casa: “vai com Deus, meu filho! Cuidado na estrada!”. Na frase de minha mãe há duas realidades a serem observadas: o dom e a tarefa. O dom está na primeira expressão: “vai com Deus.” E eu vou mesmo. Ele não sabe me deixar ir sozinho. Na segunda está a tarefa: “cuidado na estrada!”. Na tarefa, a vida resguarda o espaço para a responsabilidade humana. Tenho duas possibilidades diante da fala de minha mãe: acato ou não. Se eu acato, o dom se manifesta. Se não, ele fica ofuscado na minha escolha errada.”
“[...] Em todas as situações humanas há sempre uma parcela de dom a ser recebida, e a uma parcela de esforço a ser executada.”


Como vejo verdade neste pequeno trecho. Acelerar o carro a 200Km/h em condições de chuva é uma escolha minha. Imprudente. Errada. Mas ainda uma escolha minha. Mas ao acontecer o acidente, não se poderá dizer à minha mãe que “Deus quis assim”, ou que “Ele tinha o direito de dirigir como quiser”. Duas coisas: a primeira é que Deus não tem nada com isso. Eu optei pelo suicídio implícito em minha atitude. Deus me respeita. É seu amor sem limites que não Lhe permite não me respeitar. Ele me segue, me guia, me acompanha. Mas se eu não quiser Sua companhia, ele, em todo o seu amor, me respeita mais uma vez e deixa que minha consciência, que Ele também me deu, me guie pela vida. Se não me esforço em fazer minha parte, em ser prudente e responsável, esta é uma responsabilidade minha. A segunda coisa é que não, eu não tinha o direito de dirigir como quisesse, pura e simplesmente. Eu tinha o direito de dirigir como quisesse, contanto que eu não pusesse em risco a minha vida ou a de outras pessoas. Contanto que eu não expusesse a uma situação desnecessária de sofrimento meus pais e todos aqueles que me amam de verdade.

Não há dom maior do que a vida. Não há nada mais precioso a zelar. Não há nada que demande, porém, mais esforço. A vida à qual me refiro é aquela voltada para Deus, para as coisas do espírito. É claro que temos nossas necessidades terrenas, do corpo, e assim sempre será. Temos que trabalhar, incentivar e participar do progresso humano, casar, ter filhos. Tudo isso faz parte da nossa vida. Mas podemos fazer tudo isso sem abandonar a busca por Deus. Sem que para poder ser felizes precisemos de coisas que não condizem com as verdades exemplificadas na Terra por tantos homens e mulheres. Viver é fácil. Viver dessa forma é difícil. E é por isso que acho que muita gente desiste, que muita gente faz escolhas mais simples, egoístas, que ignoram o mundo ao redor e só pensam em sua própria vida, em seu próprio bem estar e em mais nada.

Eu tenho sempre dito que precisamos saber errar. Deixe-me explicar. Somos humanos, e como tal somos imperfeitos. Estamos aqui para que nos melhoremos e ascendamos a Deus, cultivando em nossos espíritos todas as virtudes que conseguirmos cultivar. Portanto, erraremos sempre. Eu, pelo menos, tenho certeza de que vou errar até o último dia de minha vida. Seria hipocrisia dizer o contrário. Viver é uma conquista diária. É aprender a todo momento. É vigiar os próprios atos e pensamentos todo o tempo. É dar-se a Deus pouco a pouco, conforme nossa maturidade vai nos permitindo. Saber errar é errar ciente disso tudo. É corrigir um erro para que ele não mais se repita. É errar um erro novo, diferente. Um erro que serve de lição para que aprendamos, o corrijamos e nos demos mais um pouquinho a Deus. Saber errar é passar todos os momentos da vida tentando corrigir erros anteriores até que finalmente consigamos, para que, pelo menos neste ponto, não tornemos a falhar. É isso que nos diferencia, que nos faz seguir mais ou menos confiantes no caminho difícil da vida. É isso que nos ajuda a identificar escolhas erradas e corrigi-las antes que seja tarde.

Erraremos sempre, tenho certeza. Mas mesmo assim devemos manter em mente as palavras do Mestre, que respeita, absolve, mas adverte e educa, para que nos estimulemos a nos corrigir a todo instante: “Pois bem: nem eu te condeno. Vai, e doravante não tornes a pecar (Jo 8:11)”.